É o médico que é responsável por manter a homeostasia das funções vitais do doente durante um evento cirúrgico ou procedimento médico. Realiza essa função através da monitorização dos sinais vitais e do estado geral do doente. A especialidade de Anestesia é essencialmente diferente das restantes, na medida em que proporciona a intervenção das outras especialidades de forma segura e racional. É frequente que os doentes conheçam o seu médico cirurgião, mas não o seu anestesiologista, provando que somos como um “guardião incógnito” responsável pela manutenção da vida daquele doente.
A consulta pré-anestésica é o momento ideal para avaliar e otimizar o doente à intervenção cirúrgica proposta. A avaliação pré-operatória procura identificar e quantificar os possíveis fatores de risco e tomar atitudes para, se possível, corrigir ou prevenir as complicações relacionadas no pós-operatório.
Esta consulta é fundamental para esclarecer sobre as abordagens anestésicas possíveis para a intervenção proposta. É também um momento importante para esclarecer possíveis abordagens para o controlo da dor no pós-operatório.
Durante a consulta pré-anestésica é confirmada a medicação habitual do doente e ajustada pré-operatoriamente de forma a otimizar o doente para a intervenção cirúrgica.
Considerando que cada doente é único, esta alteração é feita de forma individual, dependendo dos antecedentes clínicos e co-morbilidades do doente, tipo de cirurgia, risco cirúrgico, etc. De realçar que nem todos os doentes têm indicação para suspender os medicamentos para o “sangue fino”.
Todos os tipos de anestesia administrados têm o objetivo de manter o doente confortável e sem dor durante uma cirurgia ou procedimento médico. Existem quatro tipos de “anestesia” que podem ser combinados entre eles. O tipo de anestesia que o doente recebe dependente da condição clínica do doente e da própria preferência, por isso é tão importante uma consulta pré-anestésica.
O tipo mais conhecido é a anestesia geral, anestesia em que o doente está inconsciente durante a intervenção cirúrgica, respirando por um tubo endotraqueal com o auxílio do ventilador mecânico que serve de “pulmão artificial”, e durante a qual são administrados vários fármacos endovenosos e gases anestésicos para manter as suas funções vitais normais. No final da cirurgia o anestesista reverte a sua medicação e aguarda a retoma do doente ao estado inicial.
Outro tipo de anestesia cada vez mais utilizada é a anestesia loco-regional. Neste tipo de anestesia uma parte do corpo fica “sem sensibilidade”, como um braço ou da cintura para baixo, permitindo a realização da cirurgia com o doente acordado. O anestésico local é administrado através de uma injeção ou de um pequeno cateter através de uma “picada nas costas” - raquianestesia ou cateter epidural - ou através de uma picada sobre o nervo a bloquear. Este tipo de anestesia é vantajoso nos tempos atuais devido à pandemia COVID-19 por não manipular a via aérea e assim diminuir o risco de contágio para os profissionais de saúde. Este tipo de anestesia poderá ser acompanhado do uso de sedativos e analgésicos que deixam o doente calmo e confortável.
A anestesia local é um tipo de anestesia utilizada maioritariamente para pequenas cirurgias e envolve a infiltração de um anestésico local que bloqueia a condução nervosa e deixa temporariamente uma área anatómica sem sensibilidade/dormente. Este tipo de anestesia também pode ser utilizado para diminuir a dor nos pós-operatório.
Por último também temos os cuidados anestésicos monitorizados que são utilizados maioritariamente fora do bloco operatório. São realizados em procedimentos como endoscopias digestivas, intervenções em exames de radiologia e procedimentos cardíacos, neurológicos e pulmonares.
Todos os atos médicos estão associados a potenciais riscos e complicações e a anestesia não é exceção. No entanto a probabilidade de uma pessoa saudável morrer durante uma anestesia geral diminuiu consideravelmente nos últimos anos, sendo atualmente comparável ao risco de uma viagem num avião comercial e é mais seguro do que uma viagem de carro (probabilidade de uma morte por 10.000 anestesias realizadas). É assim um dos atos médicos mais seguros a que pode ser submetido.
Simplificadamente terá que estar seis horas em jejum para comida sólida e duas horas para líquidos claros (água ou chá). Isto diminui o risco de aspiração ao realizar uma anestesia geral. Em situações de emergência, situação conhecida como "estômago cheio", em que não se pode aguardar as horas de jejum recomendadas, o anestesista toma precauções especiais para reduzir o risco de aspiração pulmonar.
Uma parte da avaliação da via aérea é a observação do estado de dentição do doente. Neste caso, o anestesista vai querer saber se o doente tem falta de algum dente, dente a abanar, se utiliza prótese dentária ou se tem pontes/coroas. Quando um doente vai ser entubado, os dentes a abanar, muito próximos entre si e a diminuição da abertura da boca podem resultar numa dificuldade acrescida à entubação, e em eventual danificação dos dentes, por isso todas as próteses se possível deverão ser retiradas e os dentes a abanar poderão ter de ser extraídos previamente.
Idealmente antes de qualquer intervenção anestésica, seja ela cirúrgica ou não cirúrgica, o doente deverá ser observado numa consulta pré-anestésica. Exames complementares de diagnóstico de “rotina” como análises, radiografia do tórax ou o eletrocardiograma num doente sem doença crónica e assintomático não tem qualquer interesse. Assim os exames são pedidos com base nos fatores de risco que o doente apresente, eletrocardiograma se o doente tiver fatores de risco cardiovasculares, radiografia pulmonar se houver risco pulmonar (doença pulmonar, fumador, etc.) e análises laboratoriais com base na cirurgia prevista e técnica anestésica prevista.
Existe sempre esse risco com a toma de qualquer medicamento. Geralmente na anestesia utilizam-se vários medicamentos, todos eles em geral bastante seguros. Por vezes os doentes pensam que são alérgicos à anestesia por terem tido uma experiência desagradável associada à anestesia, como por exemplo a ocorrência de náuseas e vómitos, tremores incontroláveis, sensação de estar acordado sem conseguir reagir. Tudo isto são potenciais efeitos secundários dos fármacos e não reações alérgicas. A acontecerem as reações alérgicas são na sua maioria ligeiras ou moderadas, muitas vezes sem necessidade de tratamento dirigido.
Vulgarmente conhecida como o “recobro”, a UCPA é o local físico para onde o doente vai após a intervenção cirúrgica ter terminado. Apesar da cirurgia ter acabado, o trabalho do médico anestesiologista não termina aí, estendendo-se até ao momento em que se considera que todos os efeitos relacionados com a anestesia administrada tenham terminado. Além disso é o local apropriado para gerir o tratamento da dor que possa existir após a intervenção cirúrgica. Esta unidade no nosso hospital é composta por enfermeiros e médicos anestesistas de urgência.
O Dia Mundial da Anestesiologia comemora a primeira demonstração pública com sucesso de uma intervenção cirúrgica com anestesia geral que ocorreu a 16 de outubro de 1846. O doente foi anestesiado com éter pelo dentista William Thomas Green Mortan, que inicialmente denominava o éter de letheon (do grego lethe, rio do esquecimento). Com isto tornou-se possível o desenvolvimento de todas as especialidades cirúrgicas pela possibilidade de realizar intervenções cirúrgicas “sem dor”, visto que até ao desenvolvimento da anestesia, as práticas cirúrgicas restringiam-se maioritariamente a pequenas operações superficiais e a amputações de membros associadas a agonia e sofrimento atroz.
A medicina como hoje a conhecemos não seria possível se a anestesiologia não tivesse sido inventada. E desde então, a ciência e a arte da anestesia evoluíram e avançaram a um ritmo veloz até ao cenário atual, onde o papel do anestesista é abrangente e não se limita ao bloco operatório. O seu espectro de ação engloba a intervenção em emergência no pré e intra-hospitalar, terapêutica da dor aguda e crónica, anestesia dentro e fora do bloco operatório, tratamento e transporte de doentes críticos, simulação e formação médica.
Os doentes por regra conhecem pouco do que é a anestesiologia, e apesar do crescente reconhecimento e valorização da especialidade, esta foi considerada como um dos maiores avanços da medicina nos últimos séculos. Aliás em 2001 a prestigiada revista médica New England Journal of Medicine refere que a anestesiologia foi a disciplina médica que mais contribuiu para a evolução da Medicina no século XX. Uma das principais funções do médico anestesiologista é manter a homeostasia das funções vitais do doente durante um evento cirúrgico ou procedimento médico. Realiza essa função através da monitorização do estado geral do doente, do seu sistema cardíaco, pulmonar, renal, cerebral e restantes sistemas. A especialidade de Anestesia é essencialmente diferente das restantes, na medida em que proporciona a intervenção das outras especialidades de forma segura e racional. É frequente que os doentes conheçam o seu médico cirurgião, mas não o seu anestesiologista, provando que somos como um “guardião incógnito” responsável pela manutenção da vida daquele doente.
A pandemia COVID-19 continua a mudar o nosso dia a dia e todos nos tivemos que adaptar, incluindo o bloco operatório do Hospital de Santo André, que neste momento tem duas salas operatórias exclusivas para receber doentes COVID-19. Em termos de anestesiologia foram tomadas medidas para manter a segurança do nosso ato médico e diminuir o risco de contágio entre os doentes e os profissionais de saúde. Talvez nunca tenha sido tão seguro realizar uma intervenção como no momento atual devido a todas as medidas que estão a ser tomadas para diminuir o risco de infecioso. De realçar que no momento atual, os médicos anestesiologistas têm um papel crucial no tratamento de doentes COVID-19. Sendo um dos profissionais de saúde com mais experiência na abordagem da via aérea, procedimento associado a aerossolização e maior risco de infeção por COVID-19, estão na primeira linha para o realizarem caso o doente necessite de ventilação mecânica juntamente com os colegas da medicina intensiva.
Artigo elaborado por:
Leonor Aniceto Gomes, Interna de Formação Especializada de Anestesiologia do CHL
Emanuel Santos Esgaio, Interno de Formação Especializada de Anestesiologia CHL
A Anestesiologia como propulsor da medicina moderna
Até ao ano de 1846, cirurgia e dor eram sinónimos, descaracterizando as técnicas cirúrgicas que hoje conhecemos como minuciosas, metódicas e precisas.
Morton, a 16 de outubro desse mesmo ano, fez a primeira demonstração bem-sucedida da administração do éter como anestésico. Pela importância de que se revestiu este avanço na ciência, a data é atualmente celebrada como Dia Mundial da Anestesia.
A inauguração dos procedimentos sob anestesia veio a tornar-se um dos feitos mais marcantes e transformadores da história da Medicina: uma conquista da ciência sobre a dor e a validação de uma alternativa ao sofrimento físico e psicológico.
Desde então, a Anestesiologia evoluiu em ritmo célere, a par da cirurgia. Cirurgias mais sofisticadas, de maior duração e invasividade, requereram melhorias em equipamento, monitorização e fármacos, num ciclo de progresso vicariante, que rapidamente excedeu a perspetiva única da anulação da dor.
A Anestesiologia expandiu-se também a outros domínios da Medicina. A experiência na gestão intraoperatória de variáveis como a hemodinâmica e a ventilação conferiu lugar de destaque aos anestesiologistas no desenvolvimento e criação das primeiras unidades de cuidados intensivos. Posteriormente, o advento dos anestésicos locais e da anestesia locorregional catapultou os anestesiologistas para o envolvimento na abordagem da dor crónica.
Ainda que possa ser considerada uma especialidade de início recente, engloba vertentes de diversidade crescente, aspeto que confere ao anestesiologista o perfil de perito não só em medicina perioperatória como também na medicina da dor, medicina de emergência e doente crítico.
Se outrora os anestesiologistas eram vistos como profissionais de saúde cuja tarefa única era anestesiar e “acordar” doentes após a cirurgia, hoje os anestesiologistas contribuem para as etapas pré, intra e pós operatória do doente cirúrgico.
A avaliação pré-anestésica em consulta permite a caracterização precisa do estado de saúde do doente e cria oportunidades para o capacitar para procedimentos cirúrgicos, de forma a minorar eventos adversos. Conjuntamente com a adoção de checklists e atuações padronizadas por algoritmos, observou-se uma redução global da mortalidade diretamente relacionada com a anestesia, hoje estimada em 1/300 000 casos em doentes saudáveis.
No intraoperatório (durante a anestesia), os avanços incluem máquinas anestésicas e monitores eletrónicos que fornecem informação cada vez mais detalhada sobre variáveis fisiológicas do doente e qualidade da anestesia. À anestesia geral, dantes alternativa exclusiva, juntaram-se bloqueios neuroaxiais (epidural, bloqueio subaracnoideu,…) e bloqueios de nervo periférico, que se complementam para que atualmente se possam submeter, com segurança, doentes com patologias complexas e debilitantes a um número maior de cirurgias/técnicas. É agora possível anestesiar “seletivamente” uma região corporal ou permitir que o doente se mantenha vígil durante os procedimentos, de que é exemplo a interação mãe/criança durante uma cesariana.
Os cuidados pós-operatórios evoluíram na mesma medida. Além da vigilância imediata nas unidades de cuidados pós-anestésicos, que permite identificar rapidamente complicações precoces, a Anestesiologia envolveu-se de forma mais prolongada na recuperação dos doentes, nomeadamente na vigilância da dor aguda do pós-operatório.
Fora do bloco operatório, a Anestesiologia tem vindo a dar resposta a um número crescente de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, viabilizando os avanços tecnológicos que priorizam técnicas não cirúrgicas, minimamente invasivas, em áreas como a gastroenterologia, pneumologia e a imagiologia. Igualmente, tem vindo a consubstanciar-se como componente da gestão do trabalho de parto, contribuindo para a diminuição das complicações do parto, para a mãe e para o recém-nascido.
A faceta alcançada com crescente segurança das técnicas anestésicas, com efeitos e complicações reduzidas, permitem também abordar um número crescente de doentes em contexto ambulatório.
Assim, no quotidiano do anestesiologista, é possível, num só dia, proceder a uma anestesia geral para tratamento cirúrgico de uma hérnia umbilical num adulto, participar numa reanimação após paragem cardiorrespiratória, contribuir para um parto eutócico indolor, após realização de analgesia neuroaxial, sedar para a realização de exames complementares na gastroenterologia ou entubar um bebé prematuro em dificuldade respiratória.
O serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar de Leiria integra uma equipa de 21 médicos anestesiologistas e 6 médicos internos de formação especializada, empenhados na prestação de cuidados de qualidade e segurança superior e salvaguardando a satisfação dos doentes.
Feliz Dia Mundial da Anestesia!
Artigo elaborado por:
Raquel Fonseca, Assistente Hospitalar de Anestesiologia do CHL